domingo, 15 de maio de 2011

Historinhas [1]

Terrível é andar na Rua Grande. Pior é morrer de frio. Mas o frio não faz parte da minha realidade, então reclamemos da Rua Grande.

Não.

Falemos de quem anda nela. O Rendez-vous das personagens, vivendo histórias paralelas, porém, e principalmente, compondo o personagem maior do inferno que é andar na Rua Grande (eu gosto).

Aprofundemos o zoom: a história é sobre uma velhinha que atravessa a rua, da João Lisboa à Rua do Passeio. Em números, estamos falando de, aproximadamente, três sorvetes de côco de distância de uma ponta a outra.

A velha tem rosto bolachudo, de sorriso, corpo igualmente redondo. Move-se unicamente com as pernas, movendo o tronco para os lados, os ombros para frente e para trás e as mãos fixas, feito um porta-copos. Seus cabelos brancos e cacheados completam a imagem de seu vestido de estampas floridas.

Sobe o pano. Silêncio!

Dona Sônia, mulher de setecentos anos, sai de casa no propósito de renovar seus documentos.

Quando era uma ameríndia, saía de casa para caçar. Quando era uma puta francesa, saía de casa para caçar. Quando era homem de Prestes, saía de casa para caçar. Hoje, é uma velha. E acha renovar documentos um saco.

Atravessa a Rua Grande, com seu caminhar elegante. Há quem diga que Dona Sônia anda assim pelo coldre que carrega por baixo do vestido. Não chama atenção.

Para. Compra um sorvete de côco, mas não paga e sai correndo. Coreanos se comunicam ao redor: identificaram Dona Sônia.

(crescendo de flautas)

Sônia lembra do débito que está, pela morte de Gwon-Chi Von Strüdel, homem forte, filho de alemães que amavam a cultura oriental. Von Strüdel foi envenenado por Dona Sônia no Grande Almoço das Mães de Hong Kong, mas essa história não vem ao caso.

Cenário Recomposto: velhinha anda entre as pessoas; vendedores orientais correm por todos os lados


Dona Sônia corre assim como anda, mas em frenético ritmo. Os orientais, que tentam acompanhar seu passo ao longo da rua, acabam ficando para trás. Aos que chegaram mais perto, dizem, perceberam o sorvete de côco na mão de Dona Sônia, e, lembrando das velhas histórias que se contava na época da academia, resolveram voltar aos seus postos, aos prantos.

Acaba-se a Rua, chega-se ao Cartório: a escrivã saiu para o almoço. O Sorvete De Côco é usado.

Fin